Um dia no Rio de Janeiro que recebeu o príncipe Dom João
Texto Mary del Priore
Quando os Braganças desembarcaram no Rio de Janeiro, a cidade era um dos portos coloniais mais bem localizados do mundo. As facilidades de intercâmbio com a Europa, América, África, Índias Orientais e as ilhas dos mares do sul indicavam um grande elo de união entre o comércio das variadas regiões do globo.
Apesar das fantasias sobre as belezas naturais e riquezas, para quem chegasse a esta parte do planeta a realidade se impunha rapidamente. Havia, sim, o impacto positivo da paisagem da baía de Guanabara, amplifi cado pelos meses de longa viagem. Mas o exotismo passava longe da realidade urbana. No Rio, tudo era horrivelmente sujo!, fétido e abandonado. Cercado de mangues e charcos, o burgo sofria com a falta dágua e de higiene.
Era pelas ruelas estreitas, por praças sem decoração, por caminhos cheios de mato que o cotidiano de seus habitantes se construía. Na massa anônima, origens e cores se misturavam e também línguas, atividades, crenças e idéias. Gente e coisas, objetos e pessoas se acotovelavam como nunca dantes o fizeram entre nós.
Os moradores reagiram aos desafios das portas que se abriam para o mundo, construindo um singular cosmopolitismo tropical. Cosmopolitismo de longa data, pois Gilberto Freyre já identifi cara, no dia-a-dia dessa gente, traços orientais cuidadosamente trazidos pelos portugueses de suas viagens às Índias.
Os imensos guarda-sóis que abrigavam do calor, os palanquins a se arrastar pelas ruas, a esteira como espaço de descanso, as mulheres cobertas dos pés à cabeça por capas escuras, as casas caiadas de branco com beirais arrebitados, o hábito de empinar papagaios, o gosto pelos espetáculos pirotécnicos. Enfim, o porto carioca ainda cheirava ao Oriente das grandes descobertas quando a família real aqui desembarcou.
A repetição marcava a construção dos moradores da corte: Bem cedo, às 5 horas, começa o espetáculo. Primeiro, um retumbante tiro de canhão da ilha das Cobras estremece as janelas e obriga-me a despertar conquanto a escuridão ainda seja total. Às 5h30, um corneta da guarda policial, vizinha, soa a alvorada de maneira dissonante! Logo a seguir badalam os sinos por toda a cidade, especialmente os da Candelária, tão ruidosa e demoradamente como se quisessem acordar os mortos (...). Às 6 horas em ponto passam os presos a buscar água, rangendo as correntes. Os papagaios, de que as redondezas estão cheias, soltam seus gritos estridentes e, antes mesmo das 7 horas, a ralé dos cangueiros e vendilhões já está de pé a tagarelar e berrar, conta-nos o viajante Ernest Ebel.
O mesmo horário rígido marcava, também, o dia-a-dia dos ambulantes. As vendedoras de café saíam às ruas às 6 da manhã e permaneciam até as 10. Os vendedores de capim paravam de circular também às 10 horas e daí para a frente só exerciam suas vendas na praça do Capim. As vendedoras de pão-de-ló tinham de fazê-lo antes da ceia, ou seja, do almoço.
Impressionava o número de negros escravos e livres circulando pelas ruas, dando aos forasteiros a impressão de ter desembarcado na África. Entre eles, ranchos de audaciosos capoeiras cruzavam a Candelária com paus e facas, exibindo-se num jogo atlético apesar das penalidades impostas chibatadas aos escravos que capoeirassem. Não era uma massa uniforme. Nela, os indivíduos se identificavam pelos sinais de nação, talhos e escarificações no corpo ou na face, os cuidadosos penteados que denotavam estado civil e pertença a determinado grupo, o porte de amuletos, jóias ou chinelas.
Toda uma sonoridade, hoje desaparecida, identificava as formas de trabalho que enchiam as ruas a cantilena melancólica dos carregadores de vinho, as estrofes monótonas dos escravos que transportavam café, o canto cadenciado dos prisioneiros em tarefas forçadas. Por cima de tudo, o som contínuo dos sinos lembrava que cabia à Igreja, tanto quanto ao trabalho, mediar a passagem do tempo.
Às 6 horas, era o Angelus. Às 12 horas, anunciava-se que o demônio andava à solta. Melhor rezar... Às 18 horas, eram as ave-marias nas esquinas, frente aos oratórios, caso se estivesse na rua. Tantos toques para um enterro, outros tantos para um nascimento. Ao peditório em altos brados dos mendigos, se juntava aquele dos irmãos de confrarias, com bandejas de esmolas e imagens de santos à mão, numa cacofonia sem fim. Sons e gente marcavam o cotidiano do qual os Braganças começaram a fazer parte em 1808.
Fonte: http://super.abril.com.br/revista/251/materia_revista_275304.shtml?pagina=1
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